Da barbárie à civilização e de volta à barbárie

Maria e João são trabalhadores nos serviços gerais. Ela numa clínica médica e ele terceirizado num grande hospital público. Durante os governos do Partido dos Trabalhadores, se inscreveram no programa Minha Casa Minha Vida. Saíram de uma área periférica, sem infraestrutura e violenta, do Distrito Federal, com as duas filhas pequenas, para morarem no Mangueiral.

Deixaram para trás, a cerca de 50 quilômetros, décadas de laços afetivos construídos com famílias, parentes e amigos. Moravam no fundo de um terreno, atrás de uma casa de alvenaria não muito melhor que a deles, cujos tijolos parentes se misturavam ao madeirite. O telhado meia-água, com seis folhas de zinco, mal cobria encanações e fios elétricos entrelaçados.

O terreno era separado do asfalto esburacado por uma estreita calçada, num dos poucos trechos em que havia uma. A disposição dos cômodos, a criatividade das gambiarras e dos utensílios domésticos tinham a assinatura da inteligência de quem não tem condições de pagar um arquiteto nem de comprar ferramentas, mas a extrema necessidade de um teto para se abrigar com a família.

Encontraram no Mangueiral, um condomínio fechado, com portaria, vigiado por rondas periódicas e câmeras de vídeo, água, luz, esgotamento sanitário, calçamento, asfaltamento, iluminação pública, transporte coletivo regular e a poucos metros da casa. As edificações foram projetadas por arquitetos e erguidas por engenheiros e operários da construção civil. Os cômodos, planejadamente divididos em dois andares, ocupam cerca de 70m², com sala, cozinha, três banheiros, três quartos varanda e área de serviço.

O casal nasceu e viveu num ambiente hostil e degradante para qualquer adulto, que dirá para crianças. Devido à limitação pedagógica e cognitiva da mãe, somada à sua irrenunciável obrigação de criar os filhos, sozinha, Maria cresceu sob gritos, ameaças e surras, que era pra não se perder, como a mãe justificava para se perdoar. Desgraçadamente, ela e os irmãos não conheceram outro modelo de educação e o reproduziram com suas respectivas famílias.

Maria teve a mãe, três irmãos e uma irmã, apenas. Do pai, sabe apenas o nome e que não é o mesmo dos irmãos. A criação foi sob a dureza de uma realidade plena de ausências. Uma vida feita de incertezas, da alimentação, do transporte, da educação, saúde, moradia, do lazer. Enfim, herdeira da histórica exclusão social brasileira. Ela e os irmãos não foram além do Ensino Médio. A sua família é mais uma do exército de mão de obra barata e sem justiça social, cuja rotina histórica é a de trabalhar, “havendo ou não”. (Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto).

As filhas de Maria, desde nascidas, foram apresentadas ao modus operandi herdado da avó e aplicado por toda a família. Menos por João, o pai, que não levantava a voz, mas não desautorizava as agressões da mãe. Até pouco antes dos nove anos de idade, com mais ou menos dificuldade, as meninas seguiram na linha traçada para elas. Quando os hormônios começam a entrar em ebulição, a família se mudou pro Mangueiral.

O deslumbramento com a arquitetura, infraestrutura e novas relações sociais cessaram a rigidez de Maria com as filhas, por um tempo, infelizmente, não o suficiente para impedir o terrível desfecho. A família se acomodou ao lado de vizinhos acolhedores e solidários, de diferentes referências sociais e econômicas, que reconheceram o bom caráter e a decência das pessoas. O convívio diário só confirmou as primeiras impressões e o convívio transcorreu bastante harmônico e com trocas de gentilezas, até os gritos da mãe chamarem a atenção do condomínio.

Maria estava assustada com a nova vida das filhas. Elas passaram, do dia para noite, literalmente, a desfrutar de uma intensa liberdade, num ambiente muito seguro e pleno de infraestrutura. Onde moravam, L e J não passavam sozinhas dos limites do terreno da casa, nem por decreto. Já no novo bairro, os moradores dormem com as portas destrancadas e as janelas abertas. Os carros só não ficam com os vidros abaixados para se evitar de encontrar presentes felinos no seu interior. Ao atravessar a porta para fora da casa, se alcança excelente pavimentação, amplo, limpo e bem cuidado gramado e área de lazer.

Crianças transbordando energia ganharam as ruas do condomínio com muita facilidade e voracidade, fazendo muitas amizades. O êxtase das meninas mexeu com as paranoias de Maria, traumatizada pela vida num ambiente cruento. Para desespero da mãe, L e J viviam o sentido da expressão entusiasmo. Contudo, para agravar, não havia deuses suficientes para preencherem aquelas duas almas em festa.

Os estudos já não iam muito bem e foram, definitivamente, pras cucuias. Tonta de não saber lidar com as infinitas percepções das meninas, Maria entrou em pânico quando se viu impotente diante do único modelo de educação que conhecia. Não sabia conversar com filhas senão para atemorizá-las e culpá-las. Perdida, sem ter a quem pedir ajuda pra poder acolher com carinho e compreensão a nova realidade delas, a mãe engoliu seco e se resignou, arrasada.

“A gente dá aquilo que tem e educação não mata”, pensava para aliviar a consciência. Por ser a mantenedora e responsável pelas filhas, Maria tem consolidada a referência de sua mãe, que lhe confere a autoridade com o direito materno de cobrar de L e J, do seu jeito, que busquem pelo o que a mãe nunca teve. Ela conhece muito bem o destino de todas as suas contemporâneas, rebeldes e pobres, como ela, que se recusaram ou não conseguiram levar os estudos à frente. O trabalho braçal e desvalorizado.

Maria e João conseguiram estabelecer turnos diferentes em seus respectivos empregos, para ter sempre alguém em casa. Mas isso, por si só, não surtiu efeitos positivos na escola. À medida em que as séries avançam, mais complexo se torna para pais historicamente excluídos de acesso à educação formal digna, ajudarem os filhos nos estudos. A cada dificuldade de L e J, os pais, sentiam uma bigorna bater em suas cabeças e eram tomados da impotência de não saberem orientá-las numa pesquisa colegial.

Num misto de desnorteada e resignada, Maria tentava conversar com as filhas sobre a matéria e encontrar um caminho que as ajudasse. Tateava sua ignorância num mundo no qual sua limitada cognição não a deixava enxergar. Tentava compreender algo que suas filhas não compreendiam, também. Qualquer resposta das meninas continuava sem sentido pra mãe. À medida em que a conversa avançava, os problemas se avolumavam. Os ânimos alteravam porque, não raro, as meninas riam da completa ignorância da mãe.

De tanto sentirem nos ouvidos e na autoestima a frustração da mãe, que descarregava cobrança por bom desempenho escolar, as meninas procuravam manter a conversa sem provocar o ódio que a mãe sentia por não conseguir ajudar suas filhas amadas e muito bem cuidadas. Maria se exasperava de assistir à reprodução da sua vida no futuro das filhas e despejava um caminhão de impropérios e ofensas nas meninas.

Durante 10 minutos, pelo menos, a única voz ouvida na rua Z, de um dos 15 condomínios do Mangueiral, era a de uma mãe clamando socorro por não saber orientar e proteger as filhas do destino do trabalho braçal. Ela não tolerava pensar que L e J não acessariam a universidade, não teriam anel de “dotô”, e penariam a vida dos pais.

Com o passar do tempo, vizinhos mais próximos tiveram a coragem de se aproximar e tentar conversar com Maria. Foram rechaçados, um a um, pela mãe que sabia perfeitamente qual seria a orientação para qual ela não tinha condições de assumir, aumentando ainda mais, culpa, insegurança, frustração e ódio.

Infelizmente, para Maria, João, as filhas e a rua como um todo, a especulação imobiliária criou um processo de gentrificação no Mangueiral. O m² sempre foi valorizado, mas a escalada de preços cobrados se acelerou, desde o golpe de 2016, quando os pobres passaram a perder as poucas conquistas nos governos do PT, como o poder de renda.

Por volta de 2018, casas que valiam pouco mais de R$ 200 mil, tiveram as vagas para carros ostensivamente ocupadas por veículos cujos valores são os mesmos do imóvel, senão mais. Hoje, há imóveis anunciados por mais de R$ 700 mil, reformados com projetos arquitetônicos arrojados e caros.

Os primeiros valores anunciados de imóveis vendidos, animaram o casal a voltar a morar próximo dos parentes e amigos. Conversaram com os vizinhos e foram, mais de uma vez, desencorajados. Seria possível comprar uma boa e bem localizada casa onde moravam, a partir de onde restabeleceriam os velhos laços com o lugar. Contudo, vão encontrar os mesmos problemas sociais e de infraestrutura que deixaram para trás.

Consideravam não apenas esse imprescindível quesito encontrado no Mangueiral, mas a sua localização, bem mais próxima dos serviços públicos que atendem muito melhor que os de onde vieram. A escola das meninas fica na RA São Sebastião. A distância entre a casa e a escola é grande e demanda transporte. As paredes da escola do Mangueiral, que será vizinha de muro do condomínio de Maria, ainda estão sendo erguidas.

As exaustivas horas de trabalho dos pais, além da correria de cada um pra chegar em casa e render o outro para ir trabalhar, provocaram desencontros da mãe com as secretarias competentes onde poderia encontrar apoio e orientação. Isso minou as forças dos pais, desesperados porque as meninas não acompanhavam os colegas e os resultados só desanimavam. Sentiam-se deslocados, como o estrangeiro numa terra estranha. Falam o mesmo idioma dos vizinhos, mas sentiam que não faziam parte daquele espaço.

Para a tristeza de toda a rua, um dos vizinhos mais próximos da família e querido por todos, vendeu a casa e foi morar em Olhos D’Água, distrito de Alexânia (GO). O imóvel dele foi ocupado por uma mulher pouco tolerante às diversas realidades sociais, econômicas e culturais do primeiro projeto bem-sucedido de transferência de riqueza, da história do Brasil. Maria e João eram os primeiros das gerações de suas respectivas famílias a terem acesso a condições dignas de moradia.

Antes mesmo de se aproximar da família, além de cumprimentos cordiais e protocolares à distância, a nova moradora sentiu um profundo mal estar no dia em que ouviu Maria repreender as filhas. Na terceira vez em que a mãe esculachou as meninas, “apenas porque elas não queriam estudar”, segundo a vizinha, ela fez uma reclamação formal ao condomínio. Oriunda de uma realidade oposta, com os filhos bem encaminhados nos estudos e no mercado de trabalho, a mulher não tinha ideia da angústia daquela mãe.

Ao receberem a notificação do condomínio, os pais se mortificaram. São pessoas humildes, que não têm o alcance do que fazem às L e J. Pessoas de universo vocabular limitado e mentalidade provinciana, se sentiram intimidadas e não se atreveram a questionar a vizinha. Para Maria e João, ela se metia na criação das meninas e sentiram-se oprimidos e expostos. Na visão deles, sem porquê, pois apenas cumpriam o dever dos pais de orientar as filhas nos estudos.

Maria passou a se policiar, mas acabou por despejar nas filhas, mais duas ou cinco vezes, seu visceral ódio de ser uma excluída e não saber como buscar direitos sociais e jurídicos. O gesto da vizinha avivou a sensação que o casal sempre carregou, desde que cada um se entende por gente, que é a de já ter vindo ao mundo fora da lei..

Na segunda reclamação, ela ameaçou chamar o Conselho Tutelar, que o fez na quarta ou quinta vez em que ouviu Maria desqualificar as filhas, em altíssimos decibéis. Um casal adorável, pais zelosos, provedores, protetores e atentos, o quê já é uma grande demonstração de amor, passaram a maior vergonha de suas vidas. Se viram, pela primeira vez, constrangidos pela lei. Na frente das filhas, na porta de casa e expostos aos olhos julgadores dos vizinhos.

Maria e João vivenciavam a experiência de um governo que fez cumprir uma política de Estado já determinada na Constituição, que é a de garantir, entre outras coisas, moradia digna para a classe trabalhadora. Contudo, existem leis de proteção às crianças, muito bem vindas e necessárias neste país onde a banalização do mal é uma secular instituição. E a ninguém é dado o direito do desconhecimento da lei.

Maria e João foram intimados a comparecerem ao Conselho Tutelar, para audiência. Sentiram aquilo como se já saíssem de casa algemados, direto para a cadeia. Ficaram apavorados. Solapada pela conjuntura, Maria se viu impotente e prostrada. Distante da família, sem intimidade para se aconselhar com os poucos vizinhos acolhedores e solidários, nem disposição para ouvir o que eles dirão e sem saber como exigir providência do Estado, o casal jogou a toalha.

Decidiu vender a casa e voltar pra perto das famílias e de suas culturas. Conversar com quem fala o idioma deles, é o que precisavam. Era um profundo banzo. Objetivamente, a família voltará para um lugar ainda hostil e violento, onde infraestrutura é uma palavra que não faz sentido algum. Maria, João, L e J são vítimas das ainda diversas lacunas dentro de um projeto pioneiro de inclusão habitacional, no qual diferentes faixas de renda e graus de escolaridade coabitam.

Maria e João foram dilacerados por uma realidade estrutural, que os apartou daquele começo de avanço civilizatório. O valor auferido vai render uma boa casa, mas não num lugar privilegiado em determinadas infraestruturas. Será uma casa cercada por muro ou um apartamento, localizado num lugar onde a insegurança e a ausência de equipamentos públicos básicos ainda é o cenário, desde muito antes deles nascerem.

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