Guilherme Silva*
Depois de derrotar Bolsonaro, virá o trabalho de desbolsonarizar o Brasil. Investimentos pesados no acesso democrático à educação pública, gratuita e de qualidade e à produção e ao consumo cultural são dois dos principais caminhos a tomar. A história do país deve ser muito bem internalizada pela população, para se poder enfrentar a tradicional casa-grande brasileira, que dispensa apresentações, e fazê-la pagar pelos seus privilégios.
É preciso lembrar que, cerca de 30% dos eleitores votam no presidente, comungam dos mesmos valores. A classe dominante não vai deixar órfãos e sem alimentação mais de 45 milhões de irascíveis manipuláveis. Assim como criou e sustentou a Lava Jato, entre outros golpes, vai cevar e dar carinho a essas criaturas sinistras e cegas de ódio de classe. Vítimas de um projeto de crise educacional para afastar os trabalhadores dos bancos escolares, estarão sempre no cio para emprenhar de ódio contra a si mesmo.
O bolsonarismo é uma caricatura macabra de Odorico Paraguaçu, um pueril e brilhante personagem criado por Dias Gomes. O pior do ser humano está na Presidência da República porque boa parte da população se identifica com ele. Brasileiros, culturalmente dependentes, se ressentem de não serem belgas e se identificam com quem os exploram. Quando a ignorância não é por falta de acesso ou preguiça, é hipocrisia e interesse no caos. A desconstrução da cultura do retrocesso civilizatório exigirá uma overdose de investimentos, como os 75% dos royalties do pré-sal, que a presidenta Dilma destinou à educação.
A classe dominante arrepiou com a medida e tratou de golpeá-la. O volume de investimento deve ser o caminho para demolir a casa-grande e pulverizar suas estruturas, sobre as quais se erguerá uma República. A senzala passará a disputar espaços de decisão política com quem ainda detém os poderes político e econômico. E isso incomoda muito mais os ricos do que a ocupação física de seus meios de produção. O que eles temem é o tipo de decisão que pode sair de instituições em pleno funcionamento, sob sucessivos governos populares e democráticos.
A guerra não vai terminar enquanto a classe média não desenvolver consciência de classe. Convencê-la de que não é rica e não é dona dos meios de produção será tarefa para algumas gerações. O orgulho ferido de não ser nobre causará resistência e tendência à sabotagens, como acreditar em novelas do tipo Farsa Jato. Para ela, é mais cômodo aderir a um golpe da classe dominante e reproduzir, alegre e romanticamente, a escravidão, que construir uma nação minimamente justa. Isso dá trabalho, exige participação.
Já a ignorância e a aparente despolitização dos pobres, dos trabalhadores historicamente excluídos do banquete das riquezas que eles produzem, são involuntárias. A informação lhes é negada, há séculos, como um projeto para mantê-los na senzala, à disposição de sinhazinhas e sinhozinhos. A injeção de investimentos para essa camada da população deve ser não apenas abundante, mas aplicada pelos mais competentes, hábeis, honestos e humanistas gestores. Será, 134 anos depois, a abolição da senzala e a construção de uma democracia.
Para uma significativa parcela da classe média, que se acha rica e não sabe que está mais perto da pobreza do que da riqueza, essa realidade é especialmente aterradora, pois sofrerá de uma profunda crise de abstinência de banheiro limpo por um prato de comida e terá de disputar espaços de decisões políticas com os filhos das empregadas domésticas, netas e bisnetas de escravas.
Segundo o historiador, Laurentino Gomes, na obra Escravidão, quando ela foi oficialmente abolida, toda família da classe média tinha um escravo. A dependência vem sendo mantida, por mais de um século, por meio do segregacionismo imposto pela classe dominante, que pode pagar pelos serviços, sejam eles regulamentados, ou não. Os proletários que se acham ricos são facilmente manipulável pelos poderosos, como foram, em 2014. Uma significativa parcela da população, independentemente da classe social ou grau de escolaridade não percebeu a manipulação. Se percebeu e não reagiu, é conivência com a destruição do país.
Pode-se esperar coisa boa alguma da classe dominante brasileira, senão a continuidade da guerra pra açambarcar o país. Durante os investimentos que os governos Lula farão, se a classe média não compreender que se trata da luta de classes e não abandonar o atávico vício em privilégios, o Brasil está sujeito a infinitas versões de Lava Jato, que podem levar, em último caso, a uma aberta guerra civil, quando haverá a ruptura historicamente adiada.
*Guilherme Silva é jornalista