Arquivo do mês: setembro 2022

Desbolsonarizar o Brasil

Guilherme Silva*

Depois de derrotar Bolsonaro, virá o trabalho de desbolsonarizar o Brasil. Investimentos pesados no acesso democrático à educação pública, gratuita e de qualidade e à produção e ao consumo cultural são dois dos principais caminhos a tomar. A história do país deve ser muito bem internalizada pela população, para se poder enfrentar a tradicional casa-grande brasileira, que dispensa apresentações, e fazê-la pagar pelos seus privilégios.

É preciso lembrar que, cerca de 30% dos eleitores votam no presidente, comungam dos mesmos valores. A classe dominante não vai deixar órfãos e sem alimentação mais de 45 milhões de irascíveis manipuláveis. Assim como criou e sustentou a Lava Jato, entre outros golpes, vai cevar e dar carinho a essas criaturas sinistras e cegas de ódio de classe. Vítimas de um projeto de crise educacional para afastar os trabalhadores dos bancos escolares, estarão sempre no cio para emprenhar de ódio contra a si mesmo.

O bolsonarismo é uma caricatura macabra de Odorico Paraguaçu, um pueril e brilhante personagem criado por Dias Gomes. O pior do ser humano está na Presidência da República porque boa parte da população se identifica com ele. Brasileiros, culturalmente dependentes, se ressentem de não serem belgas e se identificam com quem os exploram. Quando a ignorância não é por falta de acesso ou preguiça, é hipocrisia e interesse no caos. A desconstrução da cultura do retrocesso civilizatório exigirá uma overdose de investimentos, como os 75% dos royalties do pré-sal, que a presidenta Dilma destinou à educação.

A classe dominante arrepiou com a medida e tratou de golpeá-la. O volume de investimento deve ser o caminho para demolir a casa-grande e pulverizar suas estruturas, sobre as quais se erguerá uma República. A senzala passará a disputar espaços de decisão política com quem ainda detém os poderes político e econômico. E isso incomoda muito mais os ricos do que a ocupação física de seus meios de produção. O que eles temem é o tipo de decisão que pode sair de instituições em pleno funcionamento, sob sucessivos governos populares e democráticos.

A guerra não vai terminar enquanto a classe média não desenvolver consciência de classe. Convencê-la de que não é rica e não é dona dos meios de produção será tarefa para algumas gerações. O orgulho ferido de não ser nobre causará resistência e tendência à sabotagens, como acreditar em novelas do tipo Farsa Jato. Para ela, é mais cômodo aderir a um golpe da classe dominante e reproduzir, alegre e romanticamente, a escravidão, que construir uma nação minimamente justa. Isso dá trabalho, exige participação.

Já a ignorância e a aparente despolitização dos pobres, dos trabalhadores historicamente excluídos do banquete das riquezas que eles produzem, são involuntárias. A informação lhes é negada, há séculos, como um projeto para mantê-los na senzala, à disposição de sinhazinhas e sinhozinhos. A injeção de investimentos para essa camada da população deve ser não apenas abundante, mas aplicada pelos mais competentes, hábeis, honestos e humanistas gestores. Será, 134 anos depois, a abolição da senzala e a construção de uma democracia.

Para uma significativa parcela da classe média, que se acha rica e não sabe que está mais perto da pobreza do que da riqueza, essa realidade é especialmente aterradora, pois sofrerá de uma profunda crise de abstinência de banheiro limpo por um prato de comida e terá de disputar espaços de decisões políticas com os filhos das empregadas domésticas, netas e bisnetas de escravas.

Segundo o historiador, Laurentino Gomes, na obra Escravidão, quando ela foi oficialmente abolida, toda família da classe média tinha um escravo. A dependência vem sendo mantida, por mais de um século, por meio do segregacionismo imposto pela classe dominante, que pode pagar pelos serviços, sejam eles regulamentados, ou não. Os proletários que se acham ricos são facilmente manipulável pelos poderosos, como foram, em 2014. Uma significativa parcela da população, independentemente da classe social ou grau de escolaridade não percebeu a manipulação. Se percebeu e não reagiu, é conivência com a destruição do país.

Pode-se esperar coisa boa alguma da classe dominante brasileira, senão a continuidade da guerra pra açambarcar o país. Durante os investimentos que os governos Lula farão, se a classe média não compreender que se trata da luta de classes e não abandonar o atávico vício em privilégios, o Brasil está sujeito a infinitas versões de Lava Jato, que podem levar, em último caso, a uma aberta guerra civil, quando haverá a ruptura historicamente adiada.

*Guilherme Silva é jornalista

O vaso era pra plantar flores

Guilherme Silva

Oscar Niemeyer, segundo ele, projetou um vaso para colocar plantas, mas os brasileiros colocam, recorrentemente (grifo meu), cocô. A Capital da Esperança vai se consolidar a terra da indiferença social e da luta da classe média pela preservação de privilégios da classe dominante, de quem recebe alguma migalha caída da mesa dos poderosos, ainda que estas custem a desgraça alheia, quando ainda há o suficiente para repartir democraticamente.

A concursolândia do país não forma apenas servidores públicos, mas seres atomizados em seus mundinhos de estabilidade financeira, com vivências “gratiluz”, e de agigantamento da indústria da solidão, a dos bichinhos de estimação. Cidadãos de bem, cumpridores de seus deveres e credores de direitos, com iPhones atochados nos ouvidos e protegidos pelas lentes escuras de seus óculos de sol, os consurseiros ignoram o barulho ensurdecedor e o caos ao redor deles.

Apesar de estudarem tanto, fazerem especializações com as quais auferem espaços de mais poder e maiores ganhos, têm a capacidade de se dizer não políticos, como se isso fosse capaz. Sabem que é mentira, mas tergiversam com essa pérola para não expor suas vergonhosas posições políticas, entre as quais, “bandido bom é bandido morto” e “carteira de trabalho para empregada doméstica impede que elas consigam uma vaga” de escrava.

Tamanho acesso à informação e a classe média do DF finge demência e se refugia em algum balneário nos arredores do distrito, bem longe da sua realidade política e econômica, quando tentam preencher o vazio de suas almas gratiluz, com banhos de cachoeira, comendo e bebendo muito e comprando bastante em lojas descoladas, místicas e alternativas, vejam só, ao capitalismo, que vendem produtos para quem rema contra o consumismo.

Nas eleições de 2018, 80% do aviãozinho votaram no Bolsonaro. O motivo para essa gente elegante, sincera e estruturalmente preconceituosa, assinar um atestado de idiota, foi uma consensual inoculação de ódio, desde 2013, à política, mas principalmente contra a esquerda e o Partido dos Trabalhadores. Uma gente que, mesmo depois de a Lava Jato ser desmascarada, não para de repetir, por não ter argumentos, os bordões mentirosos que decorou do Jornal Nacional e se recusa a admitir que apoiou uma farsa.

A classe média do DF, dublê de aspirante à classe dominante, elege tanto para governo quanto para Câmara Legislativa representantes ou os próprios donos dos poderes políticos e econômicos, reproduzindo a política provinciana e clientelista, na qual bilionários empresários de uma capital supostamente cosmopolita coagem os empregados de suas empresas a votarem no patrão, ou a demissão. Essa miopia voluntária apenas aprofunda o fosso entre “os que não dormem com medo dos que não comem”, diria Mílton Santos.

Em 2018, o DF teve a oportunidade de contribuir para eleger à Presidência da República um professor. Um dos lugares do Brasil com o maior número de pós-graduados por m², a “elite” intelectual do Brasil, optou por um declarado genocida. Muito antes da fatídica decisão, a população, muito bem informada, já sabia que o desprezível, ausente e pusilânime deputado federal, desviava salário de funcionários e usava uma moradia funcional “pra comer gente”.

Não satisfeita em eleger um presidente genocida, a população do DF colocou no Buriti a imagem e semelhança de Bolsonaro, tirado de sua costela. Tal e qual o criador, Ibaneis entregou a política de moradia popular para os empreiteiros locais, excluindo famílias com renda per capta de até R$ 1,8 mil, como havia no Minha Casa Minha Vida. Hoje, o pobre que não tiver, no mínimo, R$ 20 mil, cobrados pelos amigos empreiteiros do governador, não tem acesso à moradia popular digna.

Na Câmara Legislativa, não é diferente. Os eleitores do DF conseguiram transformar um dos mais importantes espaços de decisões políticas da capital numa autarquia despachante dos interesses privados da educação, da segurança, do transporte e de certas igrejas. Contudo, com raras exceções, a maior parte dos distritais está sempre aberta a negócios para o prejuízo do erário.

Enfim, Niemeyer tinha razão. O que há na cabeça e na alma de uma gente que, em vez de almejar um espaço democrático no qual haja acesso e paz para todos, não para de assentar tijolos num muro sem fim, uma espécie de Sísifo fascista. A presença de Ibaneis Rocha no Buriti e a imensa maioria da CLDF não apenas apontam o caminho que as classes dominante e média escolheram, mas revelam o caráter bárbaro, a velocidade e a voracidade da sanha predatória.

Aproxima-se o tempo em que, para ingressar no aviãozinho, será necessário aos habitantes das RAs passar por uma barreira de controle de acesso. Ou elas reagem e elegem parlamentares e governadores comprometidos com as lutas populares, ou vão se transformar em guetos completamente excluídos dos interesses de quem vive muito bem, obrigado, em Brasília, lugar da “elite intelectual” do DF, que usa a burocracia para esconder suas alienação voluntária e frieza e que ocupa delicados espaços de decisões políticas.