Arquivo do mês: fevereiro 2023

E o Lulu era moco

Guilherme Silva*

Brandão é um ex-banqueiro, que já foi muito rico. Apesar da remodelagem quantitativa e qualitativa da vida, devido a reveses financeiros, manteve as condições de bancar sua atual família e duas anteriores. Para tristeza das ex, a única que se manteve com um cartão de crédito sem limites foi a atual. Não obstante à consternação socioeconômica, ele conseguiu oferecer aos filhos o maior acúmulo de capital cultural, como boas escolas, cursos, livros, teatro, cinema, internet da melhor qualidade e viagens.

Numa dessas, a esposa e o casal de crianças, entre 9 e 11 anos de idade, foram passear nas Filipinas. Do divertimento dos turistas, durante os 15 dias de férias, não se faz a mínima ideia. Onde, como, pra quê foram são ignorados porque não foram essas partes do relato que chamou a atenção. Além de fruir a rica cultura e adquirir coisas, mãe e crianças se encantaram por um Lulu da Pomerânia, a mais nova moda da indústria pet, que coisifica seres vivos, mas com muito amor, carinho, água e ração.

Não menos divertido e inocente que a aquisição de um animal, num país estrangeiro, foi a decisão de manter a compra em segredo, como uma surpresa pro papai. As crianças vibraram de alegria e ansiedade pelo momento e não se pode cobrar delas, mas, onde estava o juízo dessa mãe? Adquiriu o bichinho, que alguns até acham lindo, como se nunca tivessem existido barreiras fitossanitárias e impostos de importação entre os países. Uma cruel ingenuidade que seria arcada por Brandão.

Ele chegou ao aeroporto com um pouco de antecedência, como era do seu costume. Trinta e cinco minutos depois, a chegada do voo é anunciada no painel eletrônico. Esperou mais cerca de 30 minutos para saber que o novo irmão de seus filhos estava retido na barreira sanitária. Demorou para assimilar a informação saída da boca da sua filha, a mais velha. Não conseguia inserir um cachorro na história. Ele sentiu sua mente dar um cavalo de pau a 200 km/h, a ponto de sentir náuseas. Ficou perplexo.

Por um segundo, chegou a pensar que o filho mais novo estava retido. Mas por quê? A menina repetiu a história, mas ele não a assimilava. A esposa se aproxima com um ar entre desentendida econstrangida. Quando ela confirmou, o sorriso dele foi de 100 a 0 em um segundo. Em seguida, seu rosto apresentou uma sequência de expressões, que ia do incrédulo ao confuso, passando pelo sorriso falso e, por fim, já desesperado, diz:

– Amor, diz pra mim que vocês estão brincando e que isso não é verdade.

– Brandão, não tive como dizer não pras crianças. – O que você queria que eu fizesse? Eles se apaixonaram e eu não os decepcionaria.

– Amorzinho, será que não dava pra comprar, aqui? – Sabia que já é uma raça bastante difundida e fácil de comprar? – Tenho certeza que as crianças se apaixonariam do mesmo jeito que vão se apaixonar pelo próximo, quando esse morrer.

Brandão tinha dificuldades de esconder a irritação diante do olhar piedoso e mordaz da esposa, de quem diz que não pode fazer nada. Ao redor, as crianças já decepcionadas e quase chorando com a conversa dos pais, cujos decibéis foram sutilmente elevados. Sem comiseração e ciente do apoio que tinha das bases, a dedicada mãe desfere o último golpe para convencer o paizão.

– E agora, o que eu faço com o cachorro e as crianças? Nunca pensei que sua reação fosse essa, por causa de um cachorrinho. Se eu imaginasse, Brandão, jamais o compraria.

Pronto, foi o sinal para o ele sentir o poder de mobilização de uma base organizada. Os filhos não pouparam demonstrações de descontentamento, frustração, decepção e raiva do pai. Desarmado e com a espada no pescoço, cedeu. Foi uma festa e ele até sorriu. Já com a mãe, ele queria ter uma outra conversa. Relevou, para o momento, e passou a tratar de questões práticas.

– O cachorro está vacinado?

– Sim, Brandão, não sou irresponsável.

– De fato, taí uma coisa que não se pode dizer de você, que é irresponsável. – E como é que faz com as burocracias fiscal e sanitária para bicho entrar no país?

– Ah, Brandão o dono da loja disse que é um animal doméstico e que não teria problema.

– Sim, claro, e você acreditou? – Então, você acha mesmo que não há imposto de importação e inspeção sanitária para autorizar a entrada do animal?

– Ué, Brandão, é só um cachorrinho.

– Essa parte eu entendi. Você é quem não entende a complexidade e os custos de se importar um animal que já pode ser considerado uma praga no Brasil. – Caramba, a gente sabe que você não nasceu ontem. – Tá bom, vou ver esse processo.

Advogado e administrador atuante e destacado, a princípio, não teve muita dificuldade para tratar do assunto, fazendo as perguntas certas. Contudo, o que o enfurecia era a brincadeira sem graça da mãe, de ostentar um luxo vazio e hedonista, que ia sair absurdamente mais caro. Não obstante a dor no seu órgão mais sensível, o bolso, a angústia o constrangia quando lembrava que seus amigos do capital especulativo não perdoariam a piada.

Resignado, foi ter com o Estado. Primeiro, a vigilância sanitária. Ao chegar com o cartão de vacinas entregue pelo vendedor, em Manila, soube que não tinha validade no Brasil e o animal teria de fazer exames, tomar vacinas e fazer demais tratamentos necessários, custeados, claro, pelo feliz proprietário do animal. Brandão era o único da família consciente disso. Os técnicos o orientaram a manter o cachorro em quarentena, sem contato com outros animais, por 30 dias, pelo menos.

Quase não conseguia conter a alegria a cada informação burocrática recebida e valores anunciados. Cogitou abandonar o bicho, mas acarretaria multa, denúncia de abandono de animal e acabaria preso e desprezado pela família. Respirou fundo e agradeceu ter condições de desembaraçar o problema. O ódio inflamava à medida em que pagava taxas sanitárias e impostos. Ao fim e ao cabo, a família passou cinco horas no aeroporto.

A caminho de casa, pensou no divórcio, mas lembrou que seriam mais duas pensões. Fez uma conta rápida e passou a achar o cachorrinho uma pechincha. Não exatamente. Ao fim dos primeiros 30 dias, cuidados veterinários, bugigangas canis e tributações fizeram um bicho que se encontra no Brasil, por R$ 2 mil, custar quase R$ 9 mil.

Já com o pequeno bolo de pelo para casa, a mãe entrou em contato com as clínicas que as amigas sugeriram, quando ela ainda passeava com as crianças. Levou o cachorro e todos os seus papeis da importação, inclusive a carteira de vacinação sem validade no Brasil. A veterinária examinou a importação com certo desdém, pois sabia que o valor pago pelo animal foi muito mais alto que se tivesse comprado no Brasil.

Depois do exame geral e da prescrição de uma porção de medicamentos e suplementos vitamínicos, coincidentemente vendidos no complexo clínico, composto de um shopping, a veterinária desconfiou do comportamento do cachorro e o encaminhou para um exame auditivo. O que seriam R$ 500 a mais nessa brincadeira? De qualquer forma, o valor foi pouco perto da notícia que tinha de dar ao marido. O laudo do exame informava que o cachorro era surdo. Foi um misto de sentimentos.

Mãe e crianças ficaram consternadas, inconsoláveis. Mas a mãe ficou, ainda, atordoada, pois sabia o que teria de aturar do marido. O pai ficou cego de emputecido com o desperdício de dinheiro e empoderou ainda mais o seu desejo de vingança. Mas, respirou fundo e tratou do assunto com uma civilidade pontual e cobrou providência da esposa. Ela se informou e não havia aparelhos e nem cirurgia que revertesse a surdez do bichinho.

Desconcertada com as crianças e o marido pressionando a sua cabeça e sem saber o que fazer, ela foi ao site da loja e gastou o seu inglês, explicando a situação. A resposta não demorou, mas tempo o suficiente para passar de heroína a vilã, com grande possibilidade de cooptação das bases pelo pai. No outro dia, lá estava a mensagem do comerciante, jogando um tijolo de bom dia na cabeça dela.

Em inglês, ele disse: “tudo bem, lamentamos muito. Se quiser, você pode mandar o cachorro de volta”. Nem uma letra a respeito de uma possível devolução do valor pago em dinheiro e com um recibo de compra que não vale nem no Polo Norte. Durante o tempo em que a família demorou para se acostumar com o bicho surdo, o pai não perdia uma oportunidade de tripudiar na cabeça da mãe, apoiado pelos filhos. Da família, o único que parecia não se importar com tudo isso, era o Lulu.

*Guilherme Silva é jornalista

Obs.: A história se passou no Rio de Janeiro e foi ouvida pelo autor do texto­