Arquivo do mês: junho 2022

O caos veste farda

Guilherme Silva*

A disposição e o esforço da classe dominante de manter uma aura de normalidade democrática fica mais evidente, a cada nova abjeção de Bolsonaro, cuja maior parte justifica todos os pedidos de impeachment sobre os quais o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, está convenientemente sentado. Desde que tomou posse, em 2019, o presidente segue cometendo todo tipo de crime de responsabilidade, no que foi solenemente ignorado pelo pleno funcionamento das instituições democráticas do país.

A prisão do ex-ministro da Educação, Mílton Ribeiro, vai dar em nada. Em última instância, o presidente troca o delegado e a equipe que investigam o caso, por outros que aceitem sujar ainda mais a Polícia Federal. Infelizmente, como em qualquer segmento profissional, vai encontrar agentes da lei que se alinhem à corrupção do seu governo. O caso será sepultado num arquivo morto, de onde sairá para exumação depois que Lula tomar posse.

O foco do assunto soterrado será transferido, num passe de mágica, para outra vilania absurda excretada do gabinete do ódio, que desaparecerá com a corrupção e a interferência Presidencial nas investigações, voltando tudo à normalidade do caos diário. Assim seria, se o requerimento de abertura de uma CPI, a fim de investigar a participação do presidente da República nas tramoias do ministro, a seu mando, não fosse protocolado. Será, se for à frente, um processo duro, lento e que exporá cotidianamente as vísceras do governo. Faltam menos de 100 dias para as eleições. Um prazo curto para desaparecer cadáver de tal vulto.

Ao mesmo tempo, já são mais de 30 milhões sob a chaga da fome, de não ter mesmo o que comer, e outros mais de 100 milhões sob insegurança alimentar. Está tudo muito caro, fora do alcance para 72% da classe trabalhadora, cuja renda não passa de dois salários mínimos. O preço de combustíveis, alimentos, moradia, mobilidade não para de aumentar, enquanto a renda do trabalhador reduziu, apenas no primeiro trimestre de 2022, 8,7%. A abundância de informalidade, de precariedade das condições de trabalho e de gente vivendo nas ruas são o resultado das políticas liberais do primata posto Ipiranga.

Como se já não bastassem todos os problemas que o pobre coitado do presidente enfrenta, diariamente, um ministro pastor, pelo qual ele colocaria a cara no fogo, atendeu demandas de colegas religiosos, negociando recursos públicos em ouro. Os efeitos das declarações que serão extraídas da CPI, das vazadas pela imprensa e dos depoimentos à polícia, serão sentidos com paulatina perda de popularidade, deixando Bolsonaro ainda mais distante de Lula, que fortalece importantes apoios políticos e constrói a consolidação de uma possível vitória, no primeiro turno. Portanto, um escândalo catastrófico para o presidente, que ficará ainda mais acuado e irascível.

Diante de iminente derrota nas urnas e da insegurança jurídica que isso significa para sua família, Bolsonaro, teleguiado por militares venais e baratos, apostará em convulsão social para desacreditar o processo eleitoral e dar mais um golpe na democracia brasileira. São oito mil altas patentes ocupando os mais sensíveis espaços de decisão política ao alcance do Executivo. Desde a posse do Partido Militar, mais de 600 mil armas de fogo foram comercializadas regularmente, devido a todos os incentivos do presidente e das bancadas da Bala, Bíblia e do Boi à liberação armamentística.

Os militares traidores do país farão Bolsonaro provocar o enfrentamento entre civis, com caos e sangue que justifique a intervenção da caserna, outra vez. No poder, essa velhacaria constituirá maneiras de se perpetuar e de transformar este pobre rico país numa continental feitoria de interesses estrangeiros. Os patriotas entregarão todas as riquezas energéticas às potências econômicas e bélicas e condenarão a população brasileira à mão de obra barata para o desenvolvimento e o avanço tecnológico de outros povos. Toda e qualquer resistência será devidamente e aos costumes, dobrada, atropelada e desaparecida.

Em troca, os parasitas de coturno de alta patente terão fonte eterna de leite condensado, picanha, KY, kit disfunção erétil, salários extrateto e pensão vitalícia pra filhas solteiras. A arrogância, o autoritarismo e a confiança na impunibilidade justificam o injustificável, com tergiversações e bravatas de caricatos tiranos que não se importam com a opinião pública. Está tudo aí, à luz do dia, diante de uma imprensa com bengala branca e cão guia. Pior, enxerga muito bem e tenta esconder da sociedade que ela, porta-voz da classe dominante, estará com os militares, sempre.

Angustiado com a perda de apoio e de uma possível prisão, o boneco estará com carga necessária para executar sua dança do caos, de descredibilizar as eleições e o Judiciário de uma forma geral. Todos os dias, ele incita a população a se voltar contra a Suprema Corte, os tribunais superiores e apoiar a absurda, esdrúxula, tosca, patética, provinciana, autoritária e inconstitucional exigência dos militares de poder interferir no processo eleitoral, atribuição, ora vejam, da Justiça Eleitoral, uma instituição civil e que só funciona sob democracia. Sem ela, morre.

Em mais de 20 anos de eleições, essa é a primeira vez que esses degenerados que conspurcam as Forças Armadas questionam a segurança e a lisura das urnas. Não conseguiram evitar o embarque de 39 quilos de pasta base de cocaína num voo internacional, do avião da Presidência da República, mas se arvoram autoridades das eleições. Isso é consequência da não devida e democrática investigação de uma história mal feita. Anistia ampla geral e irrestrita não fez justiça. Pelo contrário, chancelou a injustiça, o arbítrio, os que sequestraram, torturaram e mataram em defesa de interesses estrangeiros nos recursos energéticos do Brasil e na abundante e barata mão de obra.

Bolsonaro não tomaria esse caminho se não estivesse orientado e respaldado pelos militares golpistas. Quais poderes políticos e econômicos do Brasil e do exterior apoiam as altas patentes que conspurcam as Forças Armadas e que estão dispostas a mais um golpe de Estado? Uma tradição, desde 1889. É difícil acreditar que esse plano sairia da caserna, sem que pessoas físicas e jurídicas a apoiassem. Ademais, é do interesse dos EUA barrar o avanço da esquerda no seu quintal, desde o México à Argentina. As altas hierarquias das FA são escorpiões que fogem do instinto.

Essa aventura criminosa seria realizada se ainda fosse 1964. Hoje, não os poderes da República, mas outras instituições de reconhecimento nacional e internacional estão mais fortalecidas, a comunicação não é mais controlável e a maturidade democrática dos brasileiros e do mundo é outra. Isso preocupa muito. Se os militares sabem disso, e eles sabem, estão preparados para dar um banho de sangue no país, ou isso não passa de mais bravatas de militares de repúblicas de bananas, travestidas de estratégias de disputa por espaços de decisões políticas? Vão arriscar, em meio à animosidade civil incitada pelo boneco e danem-se se morrerem 30 mil?

*Guilherme Silva é jornalista

A imprensa e a sua liberdade

Guilherme Silva*

Ao longo da sua história, para o bem e para o mal, a imprensa tornou-se um ator político com poderes de asfixiar a economia de um país e influenciar no comportamento de uma população. Haja vista a novela Lava Jato, do Jornal Nacional, que inoculou e ainda inocula na sociedade hectolitros de ódio à política e ao Partido dos Trabalhadores, especialmente aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Nesse sentido, ela foi determinante para quebrar a indústria de engenharia pesada do Brasil, que causou centenas de bilhões de dólares de prejuízos e colocou cerca de 5 milhões de trabalhadores na rua.

Adquirir o poder, em si, não é o mal, mas a (in)consciência do que se pode com ele. Na maioria dos países civilizados, seus habitantes gostariam de acreditar mais na imprensa do que ela tem merecido, porém, ainda é uma referência de fonte de informação para a sociedade. Infelizmente, a imprensa hegemônica brasileira faz a intermediação entre a realidade e a audiência, sempre em favor dos valores de uma classe dominante escravagista. Desde que surgiu no Brasil, pelos idos de 1700, os veículos de comunicação que ousaram denunciar a ordem vigente sucumbiram, asfixiados política e economicamente, inviabilizando uma produção que nunca foi barata.

Sob a proteção de uma ditadura civil/militar e de uma transição democrática para inglês ver, conglomerados de comunicação, concentrados de meia dúzia de famílias, entre às dezenas de milhões que há no Brasil, vicejaram, se consolidaram e controlam jornais, revistas, TV, rádio, internet. Ditam o consumo de comunicação dos brasileiros. A TV a cabo, por internet, fibra ótica, etc, são sinais que não significam nada para mais de 100 milhões de pessoas, porque não chegam a elas. Ainda hoje, os programas de maior audiência, na TV, são o JN e as novelas, em TV aberta.

Em meio à imprensa venal televisiva há, ainda, a escatológica e apelativa, aquela que faz escorrer sangue no canto da tela. São programas de auditório, apresentados por animadores travestidos de jornalistas. Asfixiam o público com as tragédias social e humanitária das periferias abandonadas pelo Estado, sempre sob a narrativa criminalizadora da pobreza. Exposta a esses programas, essa população internaliza a culpa da condição, sem competência para contextualizá-la nem criticá-la. Ela não percebe que o programa não foi feito para informar, apesar de trazer o nome “jornal”.

Esse nível subterrâneo de imprensa subverteu a sacrossanta liberdade de expressão, para ofender, agredir, acusar, julgar e condenar mulheres, pretos, indígenas, homossexuais, trabalhadores de um modo geral. Atacar e desqualificar minorias políticas, que são a maioria numérica da população, voltou a ser, como nos anos 1980, uma ética aprovável. A cegueira ou conivência dos órgãos de fiscalização e controle garantem a liberdade para a banalização do mal se instalar. Surras, linchamentos, homicídios, estupros são as pautas diárias desses ditos jornais, que as instigam diariamente, em diferentes horários, reproduzindo a vida triste e injusta das periferias.

A imprensa hegemônica jamais moverá uma palha para politizar a audiência e melhorar a qualidade dos seus programas. Seria o fim de décadas de manipulação. Uma população com um mínimo de criticidade política faz esses programas desaparecer. Essa imprensa valoriza e reproduz o discurso da casa-grande, onde possui muitos aposentos. Os pobres só veem reconhecidos nesses programas como os protagonistas da desgraça, quando são as vítimas. A reprodução do show e dos privilégios da classe dominante necessitam de uma plateia cativa e amestrada. É uma classe dominante que teme o acesso justo e democrático aos recursos energéticos do país e aos meios de produção.

A imprensa livre e autônoma é uma das conquistas da democracia e da civilidade. Ela não pode faltar sob pena de apenas uma versão dos fatos prevalecer. Trata-se de um problema cultural e levará algum tempo para o Brasil ter uma imprensa respeitada. Mas nada que investimentos maciços em educação, produção e consumo de cultura e comunicação não resolvam.

Será um processo de superação. Aos poucos, programas e canais serão desqualificados pela população, obrigando a uma melhor qualificação da programação e da narrativa. Para se ter ideia da distância, será necessário que a população deixe de votar nos representantes das famílias que concentram os poderes da comunicação. Somente assim imprensa e a liberdade de expressão vão respirar livremente. Até lá, o acesso democrático será, sempre, asfixiado.

*Guilherme Silva é jornalista